domingo, 26 de julho de 2015

Ivan Ilyin: Sobre o Diabo


Em seu ensaio de 1947, o filósofo russo Ivan Ilyin (1883-1954) aponta a realidade do diabo na história e em nossos tempos. Comentando, o avanço das formas seculares e materialistas corresponde com um fascínio sempre crescente pelo diabo - juntamente com sua justificação pública. Abaixo, segue um trecho do filósofo.


Na vida da raça humana, o princípio diabólico tem sua própria história. Sobre esta questão existem sérios estudos acadêmicos - não concernentes, no entanto, com as últimas décadas. Agora, essas últimas décadas verteram nova luz sobre os dois últimos séculos. A era do Iluminismo europeu (iniciando com os enciclopedistas franceses do século XVIII) minou no homem a fé no ser de um diabo pessoal. O homem educado não pode acreditar na existência de um ser antropomórfico revoltado "com um rabo, patas e chifres" (de acordo com Zhukovsky), não visto por ninguém, mas ilustrado em baladas e pinturas. Lutero ainda acreditava nele e até jogoou sujeira nele, mas depois os séculos rejeitaram o diabo, e ele gradualmente "desapareceu" e esfumaçeou como um "preconceito ultrapassado".

Mas foi precisamente o momento em que a arte e a filosofia se tornaram interessadas nele. O Iluminismo europeu tinha só um manto do Satã ainda, e ele começou a se vestir com fascínio. Queimou um desejo de encontrar mais sobre o diabo, discernir a "forma verdadeira", adivinhar seus pensamentos e desejos, "transformar-se" nele ou pelo menos caminhar diante dos homens sob a aparência dele...

E assim a arte começou a imaginá-lo e ilustrá-lo , enquanto a filosofia tendia à sua justificação teórica. O diabo, é claro, "não teve êxito", porque a imaginação humana é incapaz de contê-lo, mas na literatura, música e pintura começou uma cultura de demonismo. No início do século XIX a Europa estava fascinada com suas formas anti-divinas; lá aparece o demonismo da dúvida; a negação; o orgulho; a rebelião; a decepção; a amargura; a melancolia; o desdém; o egoísmo e até mesmo o tédio. Os poetas retratam Prometeu, o Filho da Aurora, Caim, Don Juan e Mefistófeles.

Byron; Goethe; Schiller; Chamisso; Hoffmann; Franz Liszt; e mais tarde Stuck, Baudelaire, e outros exibem toda uma galeria de demônios ou homens e disposições demoníacos. Ademais, esses demônios são inteligentes, espirituosos, educados, engenhosos e temperamentais, em uma palavra, charmosos e que evocam simpatia, enquanto homens demoníacos são a incarnação da "angústia do mundo", "protesto nobre", e alguma "consciência revolucionária superior".

Ao mesmo tempo, a doutrina mística, sustentando que há um "princípio negro", ainda mesmo dentro de Deus, é reavivada. Os Românticos Alemães encontram palavras poéticas em favor do "inocente despudor", e o Hegeliano de Esquerda, Marx Stirner, surge abertamente pregando a auto-deificação e o egoísmo demônico. A negação de um diabo pessoal é gradualmente substituída pela justificação do princípio diabólico...

O abismo oculto por trás disso foi visto por Dostoievsky. Ele o identificou, e com seu alarme profético viu os meios para vencer isto em toda sua vida.

Friedrich Nietzsche também alcançou este abismo, foi cativado por ele, e viria a exaltá-lo. Seus últimos trabalhos, A Vontade de Poder, O Anticristo e Ecce Homo contêm direta e aberta propagação do mal... Nietzsche designa a totalidade dos sujeitos religiosos (Deus, a alma, a virtude, o pecado, o outro mundo, a verdade, a vida eterna) como um "punhado de mentiras, nascidos de maus instintos com naturezas doentias e nocivas no sentido mais profundo". "A concepção cristã de Deus" é para ele "uma das concepções corruptas criadas na terra". Aos seus olhos todo o cristianismo é apenas uma "fábula bruta de um salvador embusteiro", e os cristãos, "o partido de ninguéns e idiotas rejeitados".

O que ele exalta são o "cinismo" e o despudor, "o mais que pode ser alcançado na terra". Ele invoca a besta no homem, o "animal superior" que deve ser libertado, seja lá o que virá depois disso. Ele demanda o "homem selvagem", "vicioso" com "pança satisfeita". Tudo "cruel, o inalienavelmente ferino, o criminoso" o arrebata. "Grandiosidade existe apenas onde está um grande crime". "Em cada um de nós a besta bárbara e selvagem se afirma a si mesma". Tudo na vida que cria uma irmandade de homens - ideias de "culpa, punição, justiça, honestidade, liberdade, amor, etc." - "deveria ser completamente removido da existência". "Em direção a", ele exclama, "blasfemos, imoralistas, independentes de todos os tipos, artistas, judeus, jogadores -todas as classes rejeitadas da sociedade!"...

E não há gozo maior para ele do que ver "a destruição do melhor homem e acompanhar como, passo a passo, eles vão à destruição"... "Eu conheço meu destino", ele escreve.

Um dia meu nome será associado com a recordação de algo assustador, uma crise como tal que nunca foi vista sobre a terra, o mais profundo choque de consciência, uma sentença conjurada contra tudo que até então fora acreditado, demandado, santificado. Não sou um homem, eu sou uma dinamite.

De um tal modo a justificação do mal encontra suas últimas formas teóricas diabólicas, e ela permaneceu apenas para esperar seu decreto. Nietzsche encontrou seus leitores, discípulos e admiradores; eles adotaram sua doutrina, combinando-a com a doutrina de Karl Marx, e tomou a execução desse plano 30 anos atrás...

"Demonismo" e "satanismo" não são um e o mesmo. Demonismo é uma questão humana, enquanto satanismo é uma questão de abismo espiritual. O homem demônico é entregue aos seus instintos básicos e pode ainda arrepender-se e converter-se, mas o homem no qual, pelas palavras do Evangelho, "Satã entrou", é possuído por uma força estranha e supra-humana, e ele próprio se torna um diabo em forma humana.
Judas joga fora as pratas, por Platon Vasiliev

Demonismo é um escurecimento espiritual transitório, sua fórmula sendo vida sem Deus; o satanismo é o total e final escurecimento do espírito, sua fórmula é a derrubada de Deus. No homem demônico se rebela um instinto desenfreado e apoiado pela razão fria; o homem satânico age como instrumento de alguém que serve o diabo, capaz de saborear seu serviço repulsivo. O homem demônico gravita em torno de Satã: brincando, se divertindo, sofrendo, entrando em pactos com ele (de acordo com a tradição popular), ele gradualmente se torna o domicílio conveniente do diabo; o homem satânico se perde e se torna o instrumento terrestre de uma vontade diabólica. Aqueles que não viram tais pessoas, ou que não as veem, não as reconhecem, não conhecem o perfeito demônio primordial e não têm um entendimento do elemento verdadeiramente diabólico.

Nossas gerações são estabelecidas diante de manifestações terríveis e misteriosas do seu elemento e até nossos tempos não resolvemos como expressar sua experiência de vida em palavras adequadas. Nós poderíamos descrever este elemento como "fogo negro", ou defini-lo como inveja eterna; ódio inextinguível; banalidade militante; mentiras despudoradas; absoluta impudência e desejo absoluto por poder; o atropelo da liberdade espiritual; a sede de degradação universal; gozo sobre a ruína do melhor homem, e o anti-cristianismo. O homem que sucumbiu a este elemento perde a espiritualidade, o amor, a consciência; dentro dele começa a degeneração e a dissolução. Ele se rende ao vício consciente e à sede de destruição; ele termina em um desafiador sacrilégio e tormento humano.

A simples percepção deste elemento diabólico provoca em uma alma saudável a repulsa e o horror que pode transitar em indisposição corporal genuína, um específico "desmaio" (o espasmo do sistema nervoso simpático, disritmia nervosa e doença psicológica - que também pode levar ao suicídio). Homens satânicos são reconhecidos por seus olhos, por seu sorriso, sua voz, suas palavras e atos. Nós, russos, os enxergamos vivos e em carne viva; nós sabemos quem eles são e de onde vêm. Os estrangeiros até agora não compreenderam este fenômeno e não querem compreendê-lo, pois os leva ao julgamento e à condenação.

E até hoje, certos teólogos reformistas continuam escrevendo sobre a "utilidade do diabo" e simpatizam com sua insurreição moderna.


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