Por Martínez de Pisón*
Resumo
A
montanha contém valores de notável profundidade cultural em seus
significados. Estão propostos como exemplos expressivos: 1º, o
caráter analógico de determinados conteúdos da própria montanha e
da aproximação ao seu sítio e à sua altitude; 2º, o sentido
metafórico do vulcão na grande literatura europeia; 3º, o marcado
símbolo espiritual da ascensão em nossa literatura; e 4º, a
intensa interpretação religiosa de algumas montanhas da Ásia.
Cabe, pois, ao interesse geográfico fixar-se e aprofundar-se em tais
conteúdos, ainda que não estejam formalizados em seu restrito
território como componentes do sentido das paisagens. Portanto, se o
pensamento geográfico estabeleceu como limite de seu interesse
específico um ponto prévio a esses conteúdos, o que ficaria
amputado é o próprio conceito de paisagem.
A
montanha análoga
Há
valores visíveis; explícitos nas paisagens, que convivem com outros
ocultos, invisíveis, frequentemente tanto ou mais significativos.
Estes requerem perscrutar aquilo que não está à vista. A condição
oculta da paisagem é uma referência necessária de valor e
determinadas paisagens ficam ás vezes estreitamente enlaçadas a
essa carga simbólica. Assim, no valor oculto da ascensão reside o
símbolo espiritual de seu itinerário e do encontro com o alto. O
olhar se lança desde uma perspectiva que por acaso pode encontrar-se
melhor nas bibliotecas e nos museus do que no próprio terreno. Há
novelas que exploram esse mundo simbólico expressamente, como A
montanha análoga,
de Daumal, uma alegoria do diálogo interior com a natureza, cuja
realidade é melhor que a fantasia, O
Odor da Altitude,
de Jouty, que remete inclusive ao inalcançável e inexpressável,
mesclando a ascensão real e a espiritual pela paisagem própria do
estranho, aonde a valia moral conta mais que a capacidade física,
porque o cume verdadeiro não se corresponde com o cume material.
Significam não só enlaces com aspectos sublimes da realidade senão
mais concretamente com a cultura, ou com alguns de seus componentes
específicos: por exemplo, o inexpressável da montanha envolve com
Senancour, ou a mística da ascensão com suas metáforas poéticas.
E assim sucessivamente. Estão sendo invocados aqui, com clareza para
quem transite por esses mundos, ainda que sem dizê-lo, órbitas
próprias das letras e das artes.
Porém,
a ascensão da montanha real é sempre o percurso de uma paisagem, o
percurso apropriado ao declive e à rugosidade naturais, no qual é
preciso um trato direto com a paisagem, que opõem sua resistência e
oferece suas possibilidades. Em todo o processo de ascensão se
sopesam as forças e habilidades do ascensionista com as forças
estáticas e dinâmicas da montanha.
Ao
mesmo tempo, não é menos verdadeiro que há, ademais, uma constante
experiência espiritual que pode tomar uma expressão religiosa,
inclusive mística, presentes na literatura alpina de modo abundante.
Mas a relação entre montanha e religião é ampla, mais ampla que o
alpinismo, e tem suas raízes no mais antigo e profundo de nossa
cultura. O Himalaya é chamado por isso a morada dos deuses. O Monte
Kailash, no Transimalaia tibetano, tem um caráter religioso em si
mesmo e como objeto de peregrinação esse caráter é ainda mais
intenso e vigente, estendido a budistas, hinduístas e bon. O forte
simbolismo destas montanhas e de seus chorten ou stupas,
principalmente no budismo tântrico, adquire uma dualidade
significativa da montanha como templo e do templo como montanha. A
forma do chorten, além de seu sentido geral como túmulo e ponto de
devoção, tem significados cósmicos estratificados da terra ao céu,
de modo que sua base corresponde à terra e se refere a um tipo de
saber, o da identidade, seu domo central é símbolo da água e do
saber ver, seu mastro faz referência ao fogo e ao saber discriminar,
sua culminação significa o ar e o saber dos atos, e finalmente os
símbolos solar e lunar que o completam evocam o éter e a sabedoria
da lei. O chorten é, pois, também um símbolo do eixo ancorado no
solo, e que se lança ao céu. O nosso Teide foi considerado pelos
clássicos como “trono dos deuses” e talvez como eixo do mundo
entre os aborígenes. E sem falar do alcance cultural tão intenso
dos signos mitológicos do Olimpo ou do Parnaso. A outra grande raiz
da relação montanha e religião em nossa cultura procede dos
conhecidos acontecimentos bíblicos do Monte Sinai. O Símbolo
religioso da ascensão é, portanto, explícito, e prosseguiu em
diversas propostas ascéticas ou místicas. A subida é então
exposta como um método religioso e uma das maneiras de realizar a
viajem da prova que leva à iluminação ou à revelação, que não
são o mesmo. O ermitão significa genericamente o desejo de
retirada, de afastamento na natureza e de adentrar-se na montanha,
porque esta proporciona amplamente ambos requisitos: natureza e
solidão. Desprovida destas a montanha deixa de ser, portanto, desde
um ponto de vista simbólico e não só naturalista, um bem maior.
As
raízes universais das relações entre altitude, montanha, ascensão
e experiência religiosa possuem muitas de suas chaves catalogadas.
Algumas, por Samivel, com a capacidade de sugestão tão
característica desse escritor da montanha alpina, e com as numerosas
referências eruditas que ele era capaz de aportar, nesse caso sobre
as múltiplas modalidades que adotam as concepções religiosas da
montanha na história e na geografia. Ao abordar o simbolismo da
altitude demonstrava Samivel a associação primária entre o baixo
-com menos- e o alto -com mais-. A altitude e a verticalidade,
escrevia, são geralmente qualificadas positivamente, de tal modo que
à altitude correspondem conceitos de transcendência e à ascensão,
de progresso e crescimento. No alto se encerram signos do que é bom
e leve, do que vence o peso, do celeste; o espiritual ascende; em
contrapartida, a matéria pesa e a vida precisa lutar contra o peso.
A elevação é, portanto, uma qualidade e o cume é o seu êxito, a
vitória sobre os obstáculos materiais mediante um esforço, sua
recompensa moral. Tudo isso sacraliza a montanha e a sua ascensão. É
o esforço que consegue a entrada em um domínio alheio e aberto
entre linhas aéreas -sugestão do infinito-, em espaços grandes, no
distanciamento progressivo do basal e de seus labirintos. De modo que
a dualidade baixo-alto se polariza em dois ambientes contrapostos, o
alto como cenário de natureza, solidão e individualização; e o
baixo como mecanizado, massificado e gregário. Tudo isso são
modelos culturais. Mas o baixo também é o terreno, o mundano, o
subterrâneo, inclusive o infernal e, em contrapartida, o alto é o
celeste e o divino. Sem distanciar-nos, vemos o mesmo em culturas
populares, em misteriosos ambientes exóticos, em difíceis poetas
místicos ou no próprio Dante.
Ademais,
está claro que há um sentido moderno da ascensão, impregnado de
valores científicos, artísticos e exploratórios, que banham
culturalmente e ideologicamente o ato de ascender à montanha. Na
Espanha é o que aconteceu, em sua melhor versão, sobretudo por
influência da Instituición
Libre de Enseñanza (“Instituição
Livre de Ensino”) no excursionismo, com sua qualidade particular. A
soma de ambos os modelos e sentidos constitui o produto cultural que
o alpinista recebe e mantém. Não vamos mais nos estender sobre esse
aspecto, que requer um tratado próprio. Portanto, agora vamos nos
concentrar em três exemplos muito característicos do simbolismo
herdado e às vezes esquecido. Não são os únicos, mas são
suficientemente expressivos para revelar a existência e a
importância do lado imaginário de toda a montanha e, por derivação,
irão auxiliar-nos na busca de outros aspectos simbólicos que pesam
na cultura. Trata-se, portanto, de um percurso fugaz pela outra
vertente da geografia dos objetos, que suponho também ser geografia,
como transitar pelo lado oculto da lua, naturalmente, considerando
que ela seja redonda e não plana.
Primeiro
exemplo: a erupção como metáfora.
Vamos
começar com a raiz, com a origem simbólica da montanha no antro do
fogo e do cataclisma. Não é exato, evidentemente, só é
parcialmente verdade, mas assim tem sido prazeroso a mais de um
poeta. Um caso é o de Gabriel e Galán, quem em Gredos escrevia: “Te
engendrou trepidante o terremoto / [...] a terra te pariu de suas
entranhas, / rugindo de dor em seu seio rompido. / [...] E
transpiraste em teu alentar imenso / espirais soberbas / que cegaram
o éter de fumo denso. / e tua louca infância, brava e ardente /
envolveu-se em fraldas / que eram manto de lava incandescente...”.
Não explicaria dessa forma a origem de Gredos, evidentemente, mas a
licença poética nos serve perfeitamente para entrar no tema.
Nossa
cultura nasceu junto ao vulcão. Os grandes mitos clássicos se
associaram em casos como esse, com naturalidade no geográfico e com
lógica no dinâmico, às formas vulcânicas e às destruições
próprias das erupções. É o que se conhecia empiricamente nas
forças terrestres presentes no mundo mediterrâneo e é o que
transmitiram os escritores a seus contemporâneos e aos tempos
posteriores. Logo se transportaram também no espaço ao aplicar-se
por distintos descobridores em parte ao atlântico e ao continente
americano. Vieira e Clavijo propôs, a modo de exemplo, “se as
Ilhas Canárias foram parte da Atlântida de Platão”. A marca da
cultura mediterrânea estendendo-se pelo Globo também estava
composta por suas antigas considerações míticas e naturalistas,
logicamente.
As
referências a vulcões na mitologia clássica são, como se sabe,
abundantes: nada mais explícito que Efestos ou Vulcano, deus do fogo
profundo, como principio tanto criador como destruidor. A ativa
proximidade do Etna, do Vesúvio, de Vulcano, entre outros vulcões,
fará habitual sua presença na literatura, por exemplo, em Homero,
Hesíodo, Lucrécio, Virgílio, e algumas de suas ideias iriam
persistir até o Renascimento como explicação dos fenômenos
telúricos, como no caso dos breves, porém insistentes, discursos
expressados por Aristóteles com respeito aos terremotos e vulcões.
As fúrias atribuídas aos Titãs no antro desde o século VIII antes
de Cristo, o alento do Titã enterrado no submundo das sombras, nas
profundas câmaras de castigo, serão as forças do Etna, vinculando
contendas próprias dos homens, agigantadas, aos deuses e às forças
naturais. E, ao ar livre, outro gigante elevado até que sua cabeça
desapareça na altitude, o Atlante castigado, também haverá de
suportar o céu sobre seus ombros. É, em suma, a figura do vulcão
completo, com as raízes no inferno e sua cúspide celeste. O eixo, a
coluna inquieta e viva do universo. A erupção, a força convulsa de
sua base, é uma titanomaquia. De modo que, nesse drama –pois a
terra é entendida dramaticamente-, a cratera central do Etna foi
algo mais que o abismo em direção ao interior da Terra, o que já é
inquietante: foi a órbita esvaziada do olho do ciclope. A via
vertical, profunda, até a residência das fráguas nas cavernas,
aonde se escutam as marteladas dos ciclopes. Deste modo, em nossa
raiz a paisagem era pura força. Perto estava, não esqueçamos, do
Vesúvio ameaçante, a paisagem imediata era o perigo. Podem ler
Plínio o Jovem se acreditam que exagero.
Porém,
como sabemos, há duas tradições culturais nossas acerca dos
vulcões: aparte da cultura clássica está a bíblica, também
alegórica, que se soma às anteriores raízes com sua própria
intenção e seu âmbito, como chave de conhecimento, símbolo ou
parábola bem influentes e que inclusive se estenderam por muito
tempo na cultura popular (não agora, pois duvido que alguma dessas
duas raízes possua um grande número de adeptos nesse momento). Tais
lugares, clássicos e bíblicos, passaram a ser chaves, modelos de
referência na linguagem cultural e ritos de viagem. Tal modelo
cultural, como antes apontei, será levado com os europeus até a
América, à Filipinas e aos arquipélagos, de modo que sua extensão
não chegou a ser universal mas quase conseguiu. Ainda que não só
em nosso continente e em suas prolongações culturais, mas em todas
as partes, os vulcões foram interpretados a partir de conteúdos
religiosos, e só é preciso dar uma volta pelo mundo habitado para
acumular notas sobre essas atribuições, aqui nos bastará recordar
agora dois cenários.
De
um lado, em outras ocasiões destaquei como a Teofania da revelação
a Moisés no Sinai parece descrever uma erupção: suas trovoadas, o
estrondo, a nuvem densa que cobria o monte, o fogo ardente que
abrasava o cume, “fumegando por haver descendido a ele o Senhor em
meio às chamas”, o fumo que subia como se fosse de um forno. A
imagem do vulcão em atividade. No momento culminante da revelação,
portanto, o cenário reclama a força telúrica e o aparato do
vulcão. E, por outro lado, na destruição de Sodoma não faltam
tampouco ressonâncias aos efeitos destrutivos de algumas erupções.
Além disso, as erupções serviram repetidamente, primeiro, para
insistir no mesmo ensinamento: a interpretação do desastre natural
como castigo divino aos pecadores. E, segundo, para evocar o inferno,
cuja imagem se concretiza nas crateras incandescentes, nos
piroclastos e na lava ígnea. Um autor espanhol piedoso muito
conhecido chegou a pensar no final do século XVI se aquilo que se
via em certas crateras ativas da América poderia ser realmente o
fogo do inferno, e não lhe faltaram partidários. Para outros, de
espírito mais prático, a dúvida residia em descobrir se tal magma
era ou não ouro derretido. Como é compreensível, esse aspecto
atraiu um número maior de pessoas dispostas a obter amostras e
analisá-las. É evidente que ninguém pode comprovar com certeza
suas respectivas hipóteses.
Mas
sigamos até o âmago. Quando Dante ascende em sua viagem literária
à montanha dos antípodas figurada como o Purgatório, diz que se
trata do “monte que ao céu mais se eleva em meio às águas”. Na
viagem ao Inferno, Ulisses havia contado que em sua navegação
atlântica avistou tal montanha: “uma montanha obscura pela
distância e tão alta como nunca havia visto outra”. A importância
do clássico Atlas parece evidente, e a companhia de Virgílio se
enlaça com a raiz cultural, mas a montanha é sobretudo uma
referência com conteúdo ascético cristão e a moral localizada na
sombra de uma referência imprecisa na época de uma alta montanha
erguida sobre o oceano. E como sua culminação leva ao possível
acesso ao Paraíso, tudo se reúne, a raiz profunda cuja entrada é
uma caverna que acessa os andares do Inferno até o centro da Terra,
enquanto a montanha imprecisa de maneira oposta leva até às nuvens
e ao céu na altitude. Essa geografia sem fundamento orográfico,
baseada nas máximas clássica e religiosa de interpretação
simbólica da montanha é, no entanto, um fundamento clássico de
nossa cultura. Como essa montanha imaginária elevada no Atlântico
tem todas as probabilidades de estar baseada em uma imagem geográfica
um tanto apagada do Teide, própria do século em que foi escrito o
poema, podemos nos permitir aceitá-la seguramente entre os vulcões
e suas metáforas.
Mais
tarde há outras traduções literárias deste tipo e há uma que
possui suficiente envergadura para que ao menos possamos mencioná-la
brevemente nesse texto. Trata-se da aparição de imagens vulcânicas
no Fausto
de Goethe, em oposição alegórica com as paisagens alpinas. Os
Alpes alegres mostram o pulso da vida como um ensinamento, enquanto o
antro infernal, do fogo eterno com o “acre denso do enxofre”,
provém da demolição, dos escombros da montanha, de modo que aqui,
mais uma vez, mas a seu próprio modo, o vulcão desolado é
novamente metáfora do Diabo, mas nesse caso porque nada conhece da
maneira esperançosa de ver o mundo. Século após século, a
montanha volta a ser, de uma maneira ou outra, repetidamente tanto
rocha como metáfora.
Não
deixa de ser agradável e instrutivo passear pelas geografias de
Homero, de Dante ou de Goethe. Deveria o geógrafo abster-se disso?
Segundo
exemplo: a metáfora espiritual
Parece-nos
conveniente dedicar aqui mais uma vez, de maneira breve, ao menos
para quem não haja lido nossos velhos trabalhos, uma referência
especial à imagem tradicional que possui em nossa literatura o
símbolo da ascensão. Essas questões possuem, com efeito, sua
medula literária fortemente arraigada em nossas letras,
concretamente em São João da Cruz, e em seu centro a Subida
do Monte Carmelo, obra
escrita entre 1578 e 1582. A referência geográfica ao Monte Carmelo
se remonta aos ermitões da época das Cruzadas, instalados no século
XII na franja deste monte, situada em Haifa, próximo ao mar e que
alcança os 600 m. de altitude. Logo, a visita ao Monte Carmelo foi
sendo incluída de modo habitual no caminho dos peregrinos à Terra
Santa, entre os lugares de Jerusalém, Nazaré e São João do Acre.
Mas tudo isso não é mais que um ponto de arranque. Trata-se, mais
uma vez, no que elegemos aqui, uma geografia simbólica, de grande
entidade literária, que joga com seus elementos como se fosse uma
base real, mas evidentemente com absoluto distanciamento de uma
análise ou de um guia alpino.
A
subida, o
escrito do poeta, tem uma boa parte de seu sentido gravitando na
montanha como metáfora espiritual. Esta obra contém um sistema de
chaves expressado por todos os meios: desenho, comentários, poesia e
prosa. A ascensão é utilizada como símbolo com intenção
explicitamente ascética e mística, ainda que tais atributos acabem
por impregnar a ascensão real com caracteres sublimados. São João
fala da ascensão simbólica, e a ascensão real se contagia com tais
símbolos.
O
gráfico que acompanha o texto permite hoje, que se faça inclusive
uma leitura montanhista dos valores espirituais da ascensão ou uma
leitura religiosa de seus valores montanhistas ou uma leitura
literária de seus valores poéticos. O croqui do santo está exposto
como um esquema de ascensão moderno, com as vias de escalada em
direção ao cume e seus comentários, como poderia ser um bosquejo
alpinista. Além disso, o croqui foi desenhado pelo próprio
escritor, inicialmente de modo esquemático, ainda que logo os
carmelitas o tornaram mais elaborado nas edições sucessivas, com
maior realismo, mas sem variar as bases topográficas fundamentais
nem o percurso nem as intenções espirituais do santo poeta.
O
desenho está composto sobre uma citação do Evangelho: “que
restrita é a porta e quão estreita é a senda que conduz à vida
eterna”. O croqui representa, por isso, o itinerário gráfico da
ascensão, com suas chaves espirituais. Uma observação geográfica
de seus componentes internos nos permite decompô-lo em andares
sucessivos. De baixo para cima, eles são: Colinas
basais, com
caminhos e senda. Montanhas
desnudas
intermediárias. Montes
com árvores
espalhadas. Escarpa
pronunciada e elevada. Colina
superior com
arbustos. Cume
arredondado. Iniciemos a marcha: na base
do monte
há três caminhos possíveis, o do “espírito imperfeito”, o do
“espírito errado” e o da “senda estreita da perfeição”, a
via difícil, a escalada monte acima, fora dos caminhos trilhados.
Cada qual tem seu guia de itinerário e possui seu valor e
recomendação. Em suma, o caminho central é o correto, a chave do
monte, mas tal caminho está justamente onde não há caminho, só a
senda estreita. Despojado de superficialidades, consistirá no
essencial. O piso
intermediário alcançado
tomando somente a direção correta é a montanha desnuda. Pela senda
estreita se chega aonde não há nada. A via de escalada se adentra e
atravessa o “monte-nada” e se dirige diretamente ao cume, e o
desenho adverte “já por aqui não há caminho”. E acrescenta,
“que para o justo não há”. A leitura espiritual é a da solidão
interior. Mas a leitura da ascensão é a da rota diretamente pela
montanha desnuda como quadro de realização pessoal, com suas
exigências de negação, esforço, risco e renúncia. A isso se
segue uma faixa
superior de árvores com uma escarpa. As
virtudes desta parte do percurso são, entre outras, fortaleza,
prudência e temperança. As referências virtuosas se tornam
abundantes e sem elas não haveria passagem em tal ponto. Desde o
ponto de vista religioso são essas virtudes sustento e alcance. Desde o ponto de vista da escalada parecem objetivos, e também
assistências e condições daquele que ascende em sua relação
entre a fortaleza própria, a vinculação reta com sua equipe e a
resistência do lugar. Ao término superior da escarpa fica a
depuração espiritual transpassando o obstáculo. Como culminação,
por cima da escarpa, estão finalmente uma colina
superior e o cume. Na
ampla colina elevada e suspendida “só mora a glória e honra de
Deus”. É o fim buscado, a meta, a união com Deus, o estado de
perfeição e, de certo modo, a recompensa moral do escalador. Isto
é, se consegue um sentido espiritual explícito e máximo.
Essa
leitura montanhista da “subida” de São João que acabamos de
fazer contém um valor literário e teológico oculto, geralmente
inconscientes, mas com frequência bastante latente nos valores
habituais da ascensão do monte. Conhecê-lo, portanto, só esclarece
acerca das qualidades escondidas em nossos atos, insólitos e
rituais, e de nossas paisagens. E São João conclui: “dessa
maneira, desnudo, encontra o espírito quietude e descanso... no
centro de sua humildade”. Por isso escreveu: para evitar que as
almas não entendam “por falta de guias idôneos e corretos, que as
levem até o cume”. Deste modo manifesto, São João executa a
primeira “guia” de ascensão a uma montanha em língua espanhola,
guia sem dúvidas profundamente espiritual e simbólica, nem prática
nem geográfica, mas cuja luz transcende no “como ir”, tanto a
Deus no religioso, com voz direta, como à montanha no profano, como
eco cultural. Ou a ambos simultaneamente.
Podemos
nos permitir ler, então, só as guias de por onde ir e não de como
ir? Os significados profundos das coisas nos escaparão ou não, mas
depende do quão importante é isso para nós; tudo reside, portanto,
na trama do enredo teórico do geógrafo, de maneira que só se
crivem dados territoriais ou que sua ferramenta permita passar também
os símbolos e conteúdos que constroem a profundidade das paisagens.
Terceiro
exemplo:
Quando
se viaja e quando se lê aprende-se que, no âmbito em que temos
discorrido, as montanhas sagradas se estendem pelo mundo inteiro.
Tomavam ou tomam diversos modos religiosos, naturalmente, e por isso
convém observar igualmente os cumes distantes, em outras cosmogonias
tradicionais. Antes apareciam em quase todas as culturas e ainda
seguem sendo invocadas e cultuadas em montanhas distantes e símbolos
devotados a elas encontram-se inclusive nas que estão próximas. Na
Ásia estão presentes frequentemente, mas são encontradas
igualmente na África, na América, em ilhas distantes. São
montanhas sagradas, algumas tão famosas como o Everest, o
Kilimanjaro ou o Monte Fuji. Entretanto, montanhas europeias muito
significativas, como o Aneto e o Cervino, que são estritamente
sagradas, concluem com uma grande cruz superior cujo simbolismo é
evidente. E há certas montanhas que adquirem caráter sagrado de
modo especialmente intenso, como ocorre com o monte Kailas, no Tibet.
Porém,
na ampla continuidade geográfica entre o Tibet e Qinghai, por cima
dos altiplanos que vão do Himalaia ao Kunlun, se estendem as
cordilheiras de outras montanhas que participam de similares modos de
entendimento e de expressão religiosa, como nas digitações do
Kunlun e os sistemas transversais de Hengduan. Entre elas há um
translado de conceitos e rituais, ainda que invocados de maneira
particular ou conformando representações de deidades específicas.
O modelo é o Kailas, como pilar do mundo cujo topo sagrado é
intocável, mas há muitas outras que constituem centros espirituais
de similar intensidade. Entre elas, no espaço mencionado, devemos
unir ao Kailas (6.714 m.), no Transimalaia, ao menos o Meili ou
Kawakarpo (6.740 m.) e ao Gongga Shan (7.556 m.), ambas na
cordilheira Hengduan, e ao Amne Machin (6.282 m.) no extremo oriental
do Kunlun. Há mais pela região, porém, não tão intensamente
consideradas, na atualidade, como montanhas sagradas e inclusive
divinas. Ao possuir características simbólicas tão profundas, ao
menos as mencionadas devem ter seu lugar neste escrito, ainda que de
maneira concisa.
Tanto
no Tibet como em Qinghai há uma profusão de templos, em geral
templos budistas que se encontram ativos. Alguns, como o de Kumbum ou
Taersi, é um monastério de lamas de grande entidade, indicador de
sua potência real na sociedade local, de sua influência espiritual
e de sua persistência apesar das inúmeras tempestades da história
recente da China. No entanto, além destes centros monásticos, as
próprias montanhas são núcleos de religiosidade, com suas duras
peregrinações ao redor dos montes que atraem a numerosos fiéis.
Nem todas essas marchas ou “koras” são de idêntica exigência
física: algumas são tão pequenas que só supõem uma volta ao
redor de um chorten; algumas são de distância média, por exemplo,
ao redor do monastério de Kumbum; algumas são grandes, como ao
redor de uma montanha, que pode ter grandes desníveis, alcançar
altitudes elevadas e, como a do Amne Machin, prolongar-se por 180 km
de percurso. De modo derivado, em função da carga espiritual da
montanha podem aparecer também monastérios locais, altos, isolados,
em um vale alto do maciço Meili, em uma elevada plataforma junto ao
Gongga Shan ou ao pé do Amne Machin, que são os centros espirituais
dessa montanha tutelar, desse deus protetor feito montanha.
Entretanto,
essa inserção da montanha na paisagem geral não é tudo. Os
tibetanos leem suas paisagens de amplos horizontes também com
referências espirituais, e de fato estão repletos de lugares santos
e simbólicos que ordenam os espaços com significados
transcendentes. O território tibetano é entendido mediante
constantes dualidades: o alto e o baixo, cume e vale, sombra e luz,
casa e porto, e nele há uma série de símbolos espirituais que o
enriquecem de ordem e de centros significativos. Esses centros ou
lugares principais que concentram valores e a partir dos quais se
dividem os demais, são frequentemente montanhas com características
divinas. O Kailas inclusive ordena o mundo inteiro, reúne a
geografia mítica da Ásia e agrupa os espíritos de meio continente.
É um formidável relevo, um indivíduo geográfico sobressaliente,
pilar do mundo, é fonte de águas que se dispersam por tal
continente em todas as direções, é o centro de uma mandala
expressiva da harmonia do cosmos, está composto por quatro faces
invioláveis que guardam os espíritos do solo e que possuem portas
imaginárias para o mundo subterrâneo aonde habitam forças
complementárias, e seu vértice se prolonga no céu em uma pirâmide
inversa, intangível morada dos deuses. Ademais, cada detalhe, cada
recordação, cada caminho, cada pedra, cada contraforte possui um
significado religioso próprio. Essas montanhas não são, portanto,
simplesmente conglomerados amontoados e abertos pela erosão glacial
pleistocena; essas montanhas condensam o espírito complexo da
espiritualidade da Ásia.
As
peregrinações que circundam ao redor das montanhas são realizadas
por centenas, inclusive milhares de fiéis hoje em dia, que podem
remontar a colinas situadas a mais de 5.000 m. de altitude.
Normalmente são feitas a pé, às vezes a cavalo, em certas ocasiões
com prosternações contínuas. Deixam oferendas, repetem mantras,
dão voltas no moinho de orações, atiram ao ar estampas do
cavalinho do vento ou sopro de vida à galope, estendem bandeiras com
as cores do céu, das nuvens, do sol, da água e da terra, impressas
com preces e imagens de cavalos, que são agitadas pelos ventos da
colina, rodeiam no sentido da esquerda os túmulos de pedra, que
possuem o gravado: “Om Mani Padme Hum”.
Além
da kora do Kailas, as mais renomadas são as do Kawakarpo e do Amne
Machin. Kawakarpo é em realidade um deus benevolente, porém zeloso
de seu retiro nas alturas e aqueles que o veneram não desejam que
seus recintos, gelos e cumes sejam perturbados e nem profanados por
estranhos. Ele é representado armado sobre um cavalo branco e é o
dono do trovão. Igualmente, a divindade do Amne Machin é equestre,
vigiando do alto com sua família divina, e protegendo aos pastores
de yaks que vivem a seus pés. Conta-se que quem contemple o pico do
Gongga Shan (só o podem ver os corações puros) ficará limpo de
pecados e sua vida será então como um renascimento. Tais montanhas
personificam, portanto, um “poder tutelar”, são a encarnação
de uma divindade, de modo que cada uma é uma montanha-deus
individualizada, ainda que todas possuam características similares.
Na
origem desta doutrina está também a ideia tão comum da montanha
cósmica, o eixo do mundo ou, ao menos, da região circundante.
Sabemos que é próprio de diversas culturas o princípio do eixo do
mundo aplicado a montanhas concretas, destacadas e inacessíveis,
colunas do céu e centros de organização espiritual das coisas do
território, mas a força que adquire esse conceito no Tibet é
bastante especial. Este papel, similar ao do Kailas em escala
regional, foi atribuído, por exemplo, ao Amne Machin pelos goloks
que habitam seus flancos. Segundo as suas tradições, sua culminação
tocaria a lua e o sol enquanto sua raiz se afundaria na profundidade
subterrânea. É portanto, como a figura de um chorten gigantesco.
Esse eixo, tão alto, iria cobrir-se de cristal que serviria de
relicário gigantesco do deus denominado Machin Pomra, que estaria
pelas cumes acompanhado por centenas de seus irmãos, concretizados
fisicamente pelos cumes secundários repartidos profusamente por
todas as suas arestas. É possível, portanto, fazer um mapa da
família divina.
Logicamente,
ideias tradicionais semelhantes de sacralização das montanhas se
estendem pela cordilheira de Kunlun, aonde também reaparece outro
eixo cósmico, dessa vez com sentido geográfico e fundo espiritual.
No cume, já celeste, habitaria “O Uno”, imortal, ou em outras
ocasiões, a deusa da imortalidade, ou ali se guardariam as espadas
protetoras que vencem aos maus espíritos. O fato é que isso também
é uma montanha paralela que eu vejo, e é a mesma que vê quem está
ao meu lado. O que ocorre é que, se faço um esforço, eu posso
também entender a sua montanha sem esquecer a minha.
Enfim,
há nessas montanhas uma geografia religiosa muito intensa própria
desses lugares, razão pela qual emigraram as ilusões, fazendo-se
locais, mas não são diferentes das ilusões universais dos homens,
decantadas em histórias, lugares e personagens individuais. A
montanha dirige o espaço no interior dos homens. A paisagem é
entendida então por suas histórias, por suas vontades, por suas
respostas, em um tecido que se plasma em comportamentos. Ao protetor
dos homens, ao deus-montanha, lhe corresponderá enfrentar ao
tenebroso. A ti, o respeito. Tudo isso e muito mais ensinam as
montanhas simbólicas, muito além de sua materialidade tangível.
Se
trataria então de abarcar todos os conteúdos? Se uma parte dos
homens, quando aceita valores espirituais na paisagem, vive mais
perto dos que estão ocultos, mas se movem em ativos fios invisíveis,
do que daqueles que poderiam decantar apreços culturais de outra
ordem, aonde deveria se deter então o pensamento do geógrafo? Eu
intentaria chegar até o fundo. Creio que, depois do que foi dito, me
acompanham razões muito boas.
Bibliografía
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* Tradução de Maurício Oltramari